Brincamos. É natural brincarmos. Brincar faz-nos rir, brincar tira-nos do sério. Brincar é estar em outro mundo, proceder de outra maneira. É baralhar as cartas, é até jogar às cartas. É rir, é dizer coisas disparatadas, é fazer coisas disparatadas, é tirar umas férias de quem somos, ou de quem somos habitualmente. Brincar é bom. Podemos até pensar que brincar é inato. É-o mas temos sempre uma ajudinha: brinquedos, um quarto só para nós, uma idade em que é esperado que brinquemos. É esperado, é natural fazê-lo e alarmante se o não fizermos:
- O Zezinho não brinca… estranho…
Brincamos em conjunto, com amigos:
- onde vão vocês?
- vamos lá para fora brincar!
Ou brinca-se sozinho:
- onde está o João?
- está no quarto a brincar.
Brinca-se a tudo: com bola, sem bola, com bonecos, com cordas, com amigos reais ou irreais, brinca-se com gente da nossa idade e com gente de outra idade.
Brincar é de facto baralhar as cartas. É, antes, sermos nós a baralhar as cartas: é a mais brilhante experiência telúrica.
Brinca-se com carrinhos, com pistolas, com bonecas choronas, com legos, com paus, com espelhos, com a maquilhagem das mães, com os sapatos dos pais; brinca-se aos carros, brinca-se às mães, aos médicos, às lutas…
Depois vai-se deixando de brincar assim. Brincar deixa de ser chamado assim, também. Passa a ser chamado jogar:
- o que vão fazer lá fora?
- vamos jogar à bola!
Muda também a brincadeira. Brinca-se então não por ímpeto, mas quase por acidente, por uma fuga esporádica, imprevista, ao real:
- Não me leves a sério, estava só a brincar contigo.
O tempo passa e a brincadeira – aquela brincadeira experiência telúrica, de magia – acontece acidentalmente, apenas:
- ontem saímos todos e foi uma pândega pegada.
Parece que se extraviou pelo caminho, a brincadeira. Ainda que brincar ainda seja bom, e sejam as tais férias de nós mesmos.
Para onde foi esta brincadeira que mudou de nome e parece que fugiu?
E como encontrar esse ímpeto, essa vontade de ir lá fora a brincar aos tiros, as espadas, aos carros, às compras, às mães, às profissões?
Como encontrar isso que se fazia espontaneamente? (isto é o mesmo que perguntar como encontrar de novo a espontaneidade)
Voltar atrás não é possível, pedir aos outros que voltem atrás também não o é. Não conseguimos mudar o tempo, mas conseguimos mudar-nos a nós.
Porque não brincamos mais? é a primeira questão.
O que nos impede de brincar?
É sentir ridículos, é sentir que não há sentido, que não há oportunidade, que não temos o que tínhamos e não somos quem éramos?
Mas no entanto ainda brincamos, fugazmente, quando podemos:
Entre amigos, em festas, correndo, fazendo cócegas, contando anedotas, pregando sustos, seduzindo, conversando...
Brincamos a outro mundo qualquer, não o nosso, tão real e inextrincável, mas a outra coisa, mais irreal, em que a fantasia do que pode vir a ser é efervescente (como se diz de algumas pastilhas que se dissolvem na água)
Se brincar é bom, e é das melhores coisas que fazemos e fazíamos, porque não fazê-lo mais?
Porque não fazer com que aconteça mais vezes?
Porque não fazer com que aconteça mais vezes essa embriaguês lúcida, esse responder intuitivo, essa espontaneidade de gestos e palavras em que não nos ajuizamos mas antes, como numa montanha russa vamos excitados acima e abaixo e perdemos a cabeça?
Perder a cabeça é bom, uma vez que ela só se perde momentaneamente, dado que há sete fortes vértebras que a prendem teimosamente ao torso.
Precisaremos de reaprender a brincar. Recordemos:
Como aprendemos no passado a brincar? Esta é segunda questão.
Quem nos ensinou a dar de comer a uma boneca, a lutar com uma espada?
Quem nos ensinou foi a própria natureza que, mestra ou fada dos dentinhos, nos dizia à noite tudo o que precisávamos de saber e que quando acordávamos já sabíamos.
Brincar é inato e é só preciso um empurrãozinho.
Um carro de rolamentos é feito para andar e só precisa de um empurrãozinho. Assim como a nossa fantasia. Mas esta precisa de um empurrãozinho de fantasia também.
Ajudamos a fantasia, como quem dá ao pedal de uma motorizada, ou como quem serve os aperitivos para um jantar. O resto vai acontecendo.
E agora a terceira questão é
Que aperitivos então serviremos para convidar o apetite de brincar da fantasia?