Monday, June 30, 2008

Brincar

Brincamos. É natural brincarmos. Brincar faz-nos rir, brincar tira-nos do sério. Brincar é estar em outro mundo, proceder de outra maneira. É baralhar as cartas, é até jogar às cartas. É rir, é dizer coisas disparatadas, é fazer coisas disparatadas, é tirar umas férias de quem somos, ou de quem somos habitualmente. Brincar é bom. Podemos até pensar que brincar é inato. É-o mas temos sempre uma ajudinha: brinquedos, um quarto só para nós, uma idade em que é esperado que brinquemos. É esperado, é natural fazê-lo e alarmante se o não fizermos:

- O Zezinho não brinca… estranho…

Brincamos em conjunto, com amigos:

- onde vão vocês?

- vamos lá para fora brincar!

Ou brinca-se sozinho:

- onde está o João?

- está no quarto a brincar.

Brinca-se a tudo: com bola, sem bola, com bonecos, com cordas, com amigos reais ou irreais, brinca-se com gente da nossa idade e com gente de outra idade.

Brincar é de facto baralhar as cartas. É, antes, sermos nós a baralhar as cartas: é a mais brilhante experiência telúrica.

Brinca-se com carrinhos, com pistolas, com bonecas choronas, com legos, com paus, com espelhos, com a maquilhagem das mães, com os sapatos dos pais; brinca-se aos carros, brinca-se às mães, aos médicos, às lutas…

Depois vai-se deixando de brincar assim. Brincar deixa de ser chamado assim, também. Passa a ser chamado jogar:

- o que vão fazer lá fora?

- vamos jogar à bola!

Muda também a brincadeira. Brinca-se então não por ímpeto, mas quase por acidente, por uma fuga esporádica, imprevista, ao real:

- Não me leves a sério, estava só a brincar contigo.

O tempo passa e a brincadeira – aquela brincadeira experiência telúrica, de magia – acontece acidentalmente, apenas:

- ontem saímos todos e foi uma pândega pegada.

Parece que se extraviou pelo caminho, a brincadeira. Ainda que brincar ainda seja bom, e sejam as tais férias de nós mesmos.

Para onde foi esta brincadeira que mudou de nome e parece que fugiu?

E como encontrar esse ímpeto, essa vontade de ir lá fora a brincar aos tiros, as espadas, aos carros, às compras, às mães, às profissões?

Como encontrar isso que se fazia espontaneamente? (isto é o mesmo que perguntar como encontrar de novo a espontaneidade)

Voltar atrás não é possível, pedir aos outros que voltem atrás também não o é. Não conseguimos mudar o tempo, mas conseguimos mudar-nos a nós.

Porque não brincamos mais? é a primeira questão.

O que nos impede de brincar?

É sentir ridículos, é sentir que não há sentido, que não há oportunidade, que não temos o que tínhamos e não somos quem éramos?

Mas no entanto ainda brincamos, fugazmente, quando podemos:

Entre amigos, em festas, correndo, fazendo cócegas, contando anedotas, pregando sustos, seduzindo, conversando...

Brincamos a outro mundo qualquer, não o nosso, tão real e inextrincável, mas a outra coisa, mais irreal, em que a fantasia do que pode vir a ser é efervescente (como se diz de algumas pastilhas que se dissolvem na água)

Se brincar é bom, e é das melhores coisas que fazemos e fazíamos, porque não fazê-lo mais?

Porque não fazer com que aconteça mais vezes?

Porque não fazer com que aconteça mais vezes essa embriaguês lúcida, esse responder intuitivo, essa espontaneidade de gestos e palavras em que não nos ajuizamos mas antes, como numa montanha russa vamos excitados acima e abaixo e perdemos a cabeça?

Perder a cabeça é bom, uma vez que ela só se perde momentaneamente, dado que há sete fortes vértebras que a prendem teimosamente ao torso.

Precisaremos de reaprender a brincar. Recordemos:

Como aprendemos no passado a brincar? Esta é segunda questão.

Quem nos ensinou a dar de comer a uma boneca, a lutar com uma espada?

Quem nos ensinou foi a própria natureza que, mestra ou fada dos dentinhos, nos dizia à noite tudo o que precisávamos de saber e que quando acordávamos já sabíamos.

Brincar é inato e é só preciso um empurrãozinho.

Um carro de rolamentos é feito para andar e só precisa de um empurrãozinho. Assim como a nossa fantasia. Mas esta precisa de um empurrãozinho de fantasia também.

Ajudamos a fantasia, como quem dá ao pedal de uma motorizada, ou como quem serve os aperitivos para um jantar. O resto vai acontecendo.

E agora a terceira questão é

Que aperitivos então serviremos para convidar o apetite de brincar da fantasia?


Tuesday, June 10, 2008

Polina Klimovitskaya

Polina Klimovtskaya é uma professora russa de actores.

Tudo o que dissermos dela será pouco: se existe um vínculo vivo aos grandes mestres de teatro, indo pelo contacto directo do passado para o presente, de encenador para actor ou de professor para aluno (como se diz passarem-se os segredos das artes marciais) então Polina Klimovitskaya é uma representante viva das figuras maiores de Meyerhold, Stanislavski, Michael Chekhov e Grotowski.

Seria bom ter as palavras para dizer a sua noção do actor como artista, como criador sensível, como quase mágico;

seria bom saber descrever as suas aulas como aprendizagem de magia, e de como mágico pode ser o que surge de um actor e da sua criação;

seria bom explicar que esta mulher, vinda da Rússia, era em si um mito e carregava consigo os mitos desses grandes nomes, que citava e dava em exemplos de uma intimidade e de uma humanidade insuperáveis;

seria bom encontrar palavras para dizer que com ela se aprendia haver um mundo mágico da criação, um processo pessoalíssimo, uma ética e uma técnica tão gentil, tão subtil quanto a chama que procura acender;

seria bom ter palavras com que pagar - mais que as aulas - a ela, como mito vivo, como vínculo e exemplo, como referência, como quem dizia Atrás de nós existe um enorme e orgulhoso passado, pois atrás de nós estiveram os mestres;

seria bom agradecer-lhe o saber que há sempre uma relação pessoal na criação, que há um íntimo que precisa ser tocado, e precisa porque esse íntimo é a fantasia;

seria bom agradecer-lhe as suas histórias abundantes nas aulas, porque são estas, de outros países, de outras pessoas, que nos aguçam a vontade de partir;

seria bom agradecer-lhe o contágio da Fé e a ideia de Mestre, de que ela era intérprete extraordinária, além de cultivar - como num cuidado religioso - a ligação com os Mestres do passado, em geral desse mundo de Leste;

seria bom agradecer-lhe a fantasia de achar que a língua do sagrado e dos segredos é essa da Rússia, como nas religiões se acha sagrado a língua em que estão escritos os livros da Fé.

Sertia bom agradecer-lhe acreditar que há livros da Fé para um actor e que estes são os livros, escritos pela sua mão ou pela sua vida, dos grandes mestres Vsevolod Meyerhold, Konstantin Stanislavski, Michael Chekhov, Jerzy Grotowski, Antonin Artaud.

 

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