A Casa do Disparate
Foi-nos dado a ver, no dia 2 de Outubro, no Porto (no Teatro do Bolhão) o que talvez seja a pior das peças dos últimos tempos e sem dúvida a mais desastrada versão da peça de Lorca.
Tenho certas dúvidas de que qualquer grupo (por exemplo amador) pudesse errar tão disparatadamente quanto este recente Teatro da Terra, na encenação de Maria João Luís.
Imagine-se todos os elementos teatrais, do som à dramaturgia, da cenografia à interpretação e imagine-se tudo truncado, teremos assim uma ideia do que foi esta representação.
Imagine-se uma mulher idosa a fazer de mulher idosa e uma mulher nova a fazer de idosa, temos aqui a opção do Teatro da Terra para as personagens de María Josefa, mãe de Bernarda (que terá 80 anos) e da criada Poncia (que terá 60)- comprometendo tudo o que se seguirá;
Imagine-se que o Teatro da Terra não conseguiu (!)encontrar actrizes para as personagens das filhas de Bernarda com a idade aparente de 20 a 39 anos e todas elas pareçam ter não só a mesma idade como não ter razão para o conflito da mais velha se casar somente por ser a herdeira;
Imagine-se que a fortíssima personagem de Bernarda Alba (Custódia Gallego) nos aparece em cena com uma ridícula peruca grisalha, enfiada na cabeça como um capacete, superado apenas pela igualmente ridícula peruca de Magdalena (Inês Castel-Branco), esta negra mas também capacete - quando todas as outras não tinham senão o seu cabelo natural, longo ou não;
Imagine-se em cena, e à boca de cena, dois simbólicos e gigantescos novelos de fio vermelho, com uma também gigantesca agulha lá trespassada, constrastando alegremente com as cadeiras de aparência antiga que são ora trazidas ora levadas, ou com a água de verdade com que a criada lava o chão;
Imagine-se um elenco a entrar em cena rouco, e a obstinar-se por continuar rouco, gritando a plenos pulmões em todas as cenas - com três excepções: as actrizes que fazem de criada, de Amélia e de María Josefa (Cremilada Gil esta última - não conseguimos apurar o nome das restantes);
Imagine-se - e aqui entramos no pernicioso desta representação - que as actrizes gritam porque não há senão violência nesta peça. Violência ensandecida, injustificada, gritaria e nada mais. Como se o grande poeta García Lorca tivesse escrito esta peça para que se representasse como a mais idiota imagem da violência familiar, como se fosse apenas o paroxismo da discussão, sem se perceber que elas ficarão fechadas durante os anos de luto da morte do pai, sem se perceber que estas mulheres são mulheres e não cães, e que nem mesmo os bichos se agridem constantemente; sem se perceber que esta peça não é a colecção de neuróticas e paranóides que se representou;
Imagine-se uma peça onde as suas personagens estão condenadas a ficar durante oito anos numa casa - no vicejar das suas vidas e desejo - por altura da morte do pai e a mando da mãe: imagine-se então que de todos os matizes para esta situação (luto, pesar, confusão, esperança, revolta, rebeldia, rancor, raiva, desespero, ilusão, sonho) a encenadora tenha escolhido um só (a raiva) e assim se representem as relações entre irmãs e entre filhas e mãe;
Imagine-se que na peça que Lorca escreveu a filha mais nova (Adela) se revolta contra a mãe quebrando-lhe o bastão em dois, quando aqui a esbofeteia (?);
Imagine-se que num elenco de onze actrizes só duas parecem representar - sem gritos constantes, sem disparates, falando somente - Cremilda Gil e a actriz da personagem Amélia, sendo que estas terão sobrevivido à direcção (ou ausência dela) de Maria João Luís;
Imagine-se que a actriz-cantora Ana Brandão na personagem inacreditável de Poncia, parece ser uma anedota viva, fazendo da sua voz um circo de entoações, estragando-a para descer de timbre;
Imagine-se que esta peça, como a escreveu García Lorca, é uma tragédia e - pasme-se -não foram raras as vezes em que o público riu em uníssono de cenas tão pouco risíveis como o anúncio da morte de Pepe Romano, o rapaz que atiçou o desejo e desencadeou a catrástofe:
Angustias
Deus meu!
Bernarda
A espingarda! Onde está a espingarda? (sai correndo)
(...)
Adela
Ninguém poderá comigo!
(vai para sair)
Angustias
(segurando-a)
Daqui não sais tu com o teu corpo em triunfo, ladra! Desonra da nossa casa!
Magdalena
Deixa que se vá para onde não a vejamos nunca mais!
(soa um disparo)
Bernarda (entrando)
Atreve-te a procurá-lo agora.
Martírio
(entrando)
Acabou-se o Pepe Romano.
RISOS DO PÚBLICO
é isto possível?
Possível é que uma actriz extraordinária como Maria João Luís seja um desastre de encenadora, errando todas as escolhas - da distribuição e casting do elenco, da cenografia, de figurino, da pobríssima movimentação de cena e acertando APENAS na presença das actrizes junto às pernas do palco, na penumbra.
Possível é que uma boa actriz e cantora como a Ana Brandão se amesquinhe fazendo uma personagem que não é para si e de um modo que não é para ninguém, senão para uma anedota de criada.
Possível é que os melhores momentos nos tenham sido dados pela actriz de Amélia, entre o receio, o choque, a reserva e - lufada de ar fresco - sem gritos.
Possível é que tenha sido perdido o tempo e dinheiro a ver a peça, dado ser um disparate, e só por fé e indignação tenha investido o tempo e pensamento para escrever sobre essa disparatada perda.
Desgraça não foi a das filhas de Bernarda fechadas em casa, foi a nossa de estarmos fechados com elas.
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Sunday, October 4, 2009
A Casa de Bernarda Alba, de Federico García Lorca, pelo Teatro da Terra - Crítica
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