Nos Estados Unidos, terra de medalhas e de Phelps, os sindicatos e sindicalizados levam muito a sério o que consideram ser o âmbito da função de cada um:
o trabalhador x é contratado para fazer o serviço y, logo ninguém mais poderá fazer o serviço y, (dado que isso tiraria o sentido em ter o trabalhador x a fazê-lo).
Aqui, em Portugal, as coisas não se passam exactamente assim, nem na competitividade nem nas definições estritas das funções ou papéis de cada um. É assunto de legitimidades e sentir-se autorizado para emitir pareceres, com propriedade, sobre tudo.
Daí terem sido jogados em Portugal uns outros Jogos além daqueles de Pequim. Foram os jogos de toda a gente, e da opinião de toda a gente.
Durante duas semanas, num país em que a obesidade ataca a partir do primeiro ano de idade, toda a gente parecia saber de desporto de alta-competição, de treino de alto-rendimento, de gestão do desporto, de psicologia do desporto, de direito desportivo (o que já é um clássico), história do desporto (e do movimento olímpico por consequência).
Num país que tem Egas Moniz nos seus créditos, durante duas semanas toda a gente escreveu, falou, discutiu, exigiu, opinou baseado em coisa nenhuma, à luz de coisa nenhuma.
Bloggers, internautas, articulistas de jornais, telejornais e o resto do mundo todo em Portugal tinha uma opinião bastante firmada em coisa nenhuma sobre palavras, nacionalidade, mérito, prestação dos atletas;
toda a gente tinha uma opinião sobre a comitiva portuguesa, a distribuição orçamental, mérito e desmérito dos seus dirigentes;
e sobre o papel dos Jogos Olímpicos para um país, toda a gente também tinha opinião que era, em geral, errada*.
Para Portugal estes foram uns Jogos, não jogados para os Deuses, nem jogados entre nações, mas jogados dentro, numa gritante batalha de opiniões, cúmulo máximo daquilo que nos Estados Unidos já está esclarecido a nível de sindicatos e aqui grassa com a velocidade e voracidade do fogo no verão: cada cabeça sua sentença.
Todos sabem de tudo, todos falam de tudo. Todos são tudo. Todos são a imensa dispersão de um país. Ao ponto de um conhecido historiador escrever num conhecido jornal diário a sua opinião sobre os desportos que deveriam ou não figurar numa edição dos Jogos Olímpicos, a par da sua apreciação política sobre a cerimónia de abertura, e a apreciação estética sobre o morfo-tipo dos atletas que se vê.
Todos são especialistas e ninguém é especialista. Andamos num permanente decátulo intelectual. E isto não é especialização. É o Michael Phelps a jogar futebol, basebol, canoagem, golfe, ténis de mesa e ainda um pézinho de natação. Um desperdício de capacidades.
Sem especialização continuamos a valer, não o valor das nossas maiores valias, mas o valor do burburinho de café, discurso dos treinadores de bancada.
Pensar sim, mas à luz de alguma coisa. Assim é só pensamento ao acaso. E isto, se não faz parte da solução, então faz parte do problema.
* O papel dos atletas olímpicos não é engrandecer o país, nem trazer medalhas como ouro dos Descobrimentos, nem dignificar o desporto, ou representar seja que valores. O papel dos atletas é serem atletas. Assim como o papel dos cientistas é serem-no (cientistas) e como o papel dos artistas é serem o que são também. Tudo o resto é tralha. Não interessa para a função do atleta que é competir num jogo.
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Tuesday, August 26, 2008
Jogos Olímpicos, o pensamento e o país
Wednesday, August 20, 2008
Portugal não te portes como um fedelho
Portugal
agora reclamas os teus 14 milhões que investiste (investiste ouve bem, não foi gastaste ou desperdiçaste) nos atletas olímpicos
Portugal
tu que és obeso e sofres da tensão e tens filhos obesos cuja maior habilidade motora é, enquanto adolescentes, conseguir digitar mensagens no telemóvel sem olhar para ele
Portugal
tu que tens o Eduardo Lourenço fora do país, que tens o António Damásio fora do país, que tens o José Gil fora do país, que tinhas até há pouco o Francis Obikwelu fora do país, estando dentro, porque tu tudo apertas e tornas insuportável
Portugal
tu que compras jornais desportivos e gostas é da telenovela do comércio de jogadores e debitas estatísticas que ouves nos notíciários e tens os noticiários mais rocambolescos do mundo civilizado
Portugal
tu que reproduzes, com fidelidade, o burburinho dos cafés e outras dispensas de ociosidade, e tens um espantoso consciente colectivo, capaz de banzar até o próprio Jung, que consiste em depreciar aqueles que são melhores
Portugal
tu que só tens talentos individuais e, repara bem, como indivíduos que são foi assim que se qualificaram os atletas que agora acusas, e não com o teu dinheiro, não com os teus 14 milhões que hoje vêm em manchete depois de ontem terem vindo na tv, esse veículo de iluminação dos pobres
Portugal
Cristovão Colombo veio à nossa corte e deixámo-lo ir embora, lembra-te que temos uma péssima tradição
Portugal
hoje os países estrangeiros olharão para os teus jornais e perceberão que gostamos de lavar a roupa suja no meio da rua, e perceberão que gostamos de arrastar os parentes na lama, que gostamos de nos enxovalhar e isso, isso fará bem pior por nós que nenhuma medalha
Portugal
vê se atinas que não há pachorra para este comportamento que dura já há muitos séculos, estás insuportável, és bisbolheteiro, reclamas direitos absurdos, gostas de dar chapadas nos teus filhos na rua, para todos verem, e para mostrar que és muito chefe
Portugal
os americanos ganham mais medalhas que nós não por interferência divina: eles sabem o que é competir, na Grande Depressão atiravam-se de prédios abaixo por causa da bolsa e tu
tu ainda estás na Grande Depressão
Portugal
a América é toda uma cultura, o Phelps é toda uma cultura, não é um individuo talentoso somente
Portugal
aqui os individuos talentosos têm que lutar contra ti
Portugal
isto é demais
tu é que não mereces medalhas
tu mereces pagar muito mais que 14 milhões por aquilo que fazes
qualquer tribunal te condenaria a pagar uma indemnização
por ofensa, desmazelo e maus tratos
aos teus filhos
Portugal
vê se tratas melhor os bens que te aparecem
já que não sabes como te aparecem o Carlos Lopes, a Rosa Mota, a Aurora Cunha, a Fernanda Ribeiro
Portugal
estás à nora sobre eles, não é assim? Não fazes a mínima ideia de como surgiram, não foi?
Portugal
se continuas a assustar os teus melhores, dentro em breve já não vamos ter melhores
se continuas com esse comportamento de puto mal-educado, de fedelho mimalho dentro em pouco vais ter que contar com uma debandada
Portugal
vê se educas a tua gente, que isto está muito mal parado, que isto está um ninho de escorpiões a morderem-se uns aos outros, e isto assim não anda para a frente
lava a cara destas vergonhas, que não são mais ou menos medalhas mas o que fazes com o assunto
não se lava a roupa suja na rua
não se maldiz
e nunca, em altura nenhuma, damos voz ao preconceito, que é o que estás a fazer com essa tirada nojenta - aplicável a tudo e todos, nessa tua desconfiança crónica - eles andam a mamar
Portugal
temos que te dar educação
e isso vai custar
mas não há outro remédio
Tuesday, August 19, 2008
O atleta e o país
Quando um atleta olímpico, neste caso o velejador Gustavo Lima, decide sair do desporto de alta-competição que pratica porque na internet, neste cadinho de sabichões, se gosta de vituperar quem participa nos Jogos Olímpicos, e atletas como ele treinam sozinhos ou quase e assim é insuportável;
Quando uma coisa destas acontece e assistimos dia após dia à cuidadosa escolha de palavras dos pivots televisivos sobre as provas dos atletas portugueses: falhou, desilusão e semelhantes;
Quando isto se dá num país que só tem, note-se, méritos individuais, onde grassa muito mais facilmente a inveja e o desdém que o talento;
Quando no país que teve um Camões e não o mereceu deixando-o morrer na miséria, se deixa chegarem as coisas a este ponto, ao supremo luxo de perdermos - por culpa dos nosso defeitos - as nossas maiores qualidades, ou quem as tem por nós: os atletas (ou os escritores, ou os artistas, ou os cientistas...);
Quando em cada esquina há - não um amigo, como seria bom que fosse - mas um opinador, daqueles bem especializados, seja em desporto, ou política ou economia e finanças, ou qualquer outro domínio que seja da vida dos outros e não da própria;
Quando vivemos todos na ilusão e na ignorância e gostamos de nos conservar aí, apoucando-nos, apoucando quem pode fazer de nós maiores, ou atingir a maioridade;
Quando isto acontece, então em quinhentos anos não aprendemos nada e em mais quinhentos não aprenderemos nada também e será caso para dizer ao atleta
- às suas horas diárias de treino neste país de obesos e cardíacos
- à sua determinação neste país de hesitantes
- à sua mágoa neste país de gente em constante histerismo e negação
- à sua condição de verdadeiro especialista - ele sim, de uma modalidade - entre os melhores do mundo:
Gustavo Lima, não desistas, igual destino teve Camões e como tu atravessou águas para desenhar uma epopeia que lhe saiu do génio e do corpo.
Serás grande no Olimpo, onde estão todos os campeões, não aqui em baixo.
Não aqui em baixo.
Wednesday, August 13, 2008
Do carácter singular do futebol
Agora em tempo dos Jogos Olímpicos falemos de futebol, e de futebol em Portugal.
Um desporto que goza de um carácter excepcional, tão excepcional que em dia de abertura de Jogos Olímpicos o que abriu os noticiários foi a contratação de um jogador qualquer, seguido da não-contratação de outro qualquer, com conferências de imprensa a condizer, depois e só depois, muito depois é que veio um breve relato da cerimónia de abertura da única circunstância mundial em que milhares de atletas, de quase duas centenas de países competem em simultâneo em dezenas de desportos: os Jogos Olímpicos.
Notícias regionais superam notícias universais. É esse o carácter singular do futebol. Não é uma paixão, é uma telenovela.
Note-se: Portugal tão apaixonado, tão rei que é o futebol, tão bons que somos, e o Figo e o Ronaldo e o outro que também o é e até vai jogar para o Manchester ou o Real Madrid ou o que seja, que nem temos - no maior evento mundial do desporto - uma representação de futebol português.
Portanto aqui fica em terra o desporto mais apoiado de todos, o desporto que não é um desporto, é uma mania, um desporto que há muito se rege mais pelas leis do mercado, do marketing, da publicidade e da bolsa de valores que pelas leis do desporto; um desporto sem rei nem roque, tudo em roda livre, sem peias, sem controlo, sem sequer respeito pelo que faz um jogo ser um jogo: regras.
Temos então um jogo que não é um desporto, é uma montra de valores, onde se fala - sem vergonha, atente-se - de ganhar faltas, de ter sido injusto o resultado, de ter sido prejudicado ou outrém favorecido, de sorte, de merecer ganhar. Tudo isto como se não fosse
a) determinante quem marca mais golos, e só isso
b) um acordo tácito de quem joga aceitar as circunstâncias em que joga, aceitando arbitragens assim ou assado
c) um completo disparate vir a terreiro acusar árbitros ou falta de sorte, para justificar o que qualquer atleta sério sabe aceitar como derrota
Moral: num país em que se fala tanto de "competividade", e mais "competividade" e ainda mais "competividade" - como é dito à saciedade, e mais uma vez sem vergonha, por responsáveis políticos - se este é o desporto nacional; se a telenovela da microfractura de um tendão de um futebolista tem honras de Noticiário; se a venda, aluguer, ou troca de um jogador idem; se os mexericos sobre clubes idem aspas; se os futebolistas jogam com publicidade na frente e verso dos uniformes; se há ordenados de milhões e o Obikwelu treina em Espanha porque lá têm melhores condições, então
A competitividade nunca terá chegado às costas portuguesas, ou se chegou parou à porta dos estádios e deu meia volta para trás.
Olhem, deve ter ido para Espanha, porque lá há melhores condições.
É só ver a equipa espanhola de Basquetebol nos Jogos.
Sunday, August 10, 2008
Improvisação na tv
Está a dar agora na tv (rtp1) um programa improvisado, chama-se Ainda bem que apareceste e não tem ponta por onde se lhe pegue. Diz que é de improvisação, que é um concurso e tudo o mais mas na verdade é um programa de apanhados, não é concurso coisa nenhuma e tem um rapaz que inventa anedotas como júri.
Expliquemo-nos: os convidados entram para situações que desconhecem; um elenco residente (que esse sim conhece a situação para as quais os convidados são convidados a entrar) pergunta-lhe sobre dados que a personagem/convidado não conhece ("como te chamas?", "como me chamo?", "que foi que tínhamos combinado?" e etc.) e cujas respostas se vê na obrigação de "improvisar"; o elenco residente faz por continuar a situação independentemente das respostas dadas e de vez em quando soam gargalhadas pré-gravadas; depois ouve-se uma corneta, acaba tudo, o apresentador sobe ao plateau, ri-se alto, dá uma palmada nas costas do convidado e leva-o a ouvir uma anedota inventada a propósito por um rapaz que faz as funções de júri/avaliador fazendo anedotas sobre a situação, à maneira de outros rapazes em outros lugares que fazem caricaturas em festas, de chofre; o convidado é dispensado e o apresentador dá mais uma pequena achega explicativa sobre "improvisação" ao introduzir mais alguém ou comentar o sucedido. Assim se passa um fim de horário nobre de uma estação pública.
Nota: tem-se melhor percepção da riqueza, da espontaneidade e do jogo da improvisação lendo uma página que seja de Viola Spolin do que com este elenco constrangedor, este apresentador a puxar pró catita e o seu júri de anedota, com todo o seu rasteiro objectivo do Apanhado.
Thursday, August 7, 2008
Stanislavski 70 anos depois
Faz hoje setenta anos que morreu Konstantin Stanislavski (5 de Janeiro de 1863 - 7 de Agosto de 1938).
O que é ele senão uma lenda?
Setenta anos depois, em Portugal, neste canto do mundo ocidental, num canto especialmente esquecido dos trânsitos destas coisas, podemos perguntar: Stanislavski... quem?
Setenta anos depois podemos perguntar se sequer Stanislavski chegou a Portugal, se terá demorado tanto tempo a sua viagem desde Moscovo, se terá alguma vez aqui chegado a sua insaciável vontade de perceber o actor.
Setenta anos depois podemos perguntar se estamos, neste cantinho que gerou um Camões para só mais tarde gerar um Pessoa, se estamos mais evoluídos, se estamos nós mais munidos de heróis, se estamos nós à altura de Stanislavski.
Setenta anos depois podemos perguntar se alguma vez, à maneira inversa de um Michel Strogoff (em vez de viajar para dentro da Rússia, mas - neste caso - para fora) se terá vindo até nós o seu livro, a sua fama, o seu bafo de génio, como se fora uma horda de tártaros que tudo arrasasse da nossa pobreza de cantinho, da nossa ignorância de encurralados por uma ditadura e por nós próprios.
Setenta anos depois podemos perguntar que é de um António Pedro, que é de um Redondo Júnior, que é de um Teatro-Estúdio do Salitre, que é do nosso século vinte? Que é do verdadeiro século vinte, o que toda a gente teve e de que nós tivemos tão pouco, o das revoluções industriais? Como uma criança que vê as prendas que os outros receberam e ela não, olhamos para fora.
Setenta anos depois precisamos de heróis, precisamos cada vez mais de heróis, precisamos de Stanislavski. Precisamos do Stanislavski que viveu e fundou o Teatro de Arte de Moscovo (com Nemirovitch-Dantchenko) precisamos do Stanislavski que encenou Tchékhov e Górki e viu-se grego com os simbolistas e se sentiu seco por dentro, ele que já conseguia fazer tudo em cena.
Precisamos deste Stanislavski que sentindo-se seco por dentro labutou ainda mais para perceber como evitar que isto acontecesse (ele que mantinha diários do seu trabalho e acumulou em fim de vida sessenta anos de páginas de toda uma experiência teatral).
Precisamos do Stanislavski porque, nas palavras de Jean Benedetti (seu grande grande tradutor): his systematic attempt to outline a psycho-physical technique for acting single-handedly revolutionised standards of acting in the theatre.
Veja-se: isoladamente, sozinho!
Precisamos deste Newton do teatro, deste homem que sozinho operou a mais incontornável e inultrapassável revolução do actor, que construiu um sistema que mais ninguém conseguiu igualar, que evidenciou algo que ainda hoje faz rir muitos grotescos ignorantes: uma gramática do actor.
Precisamos dele porque não sabemos nada, porque setenta anos depois é caso para dizer que terá morrido em vão, porque setenta anos depois não existe uma única tradução decente do seu livro, porque setenta anos depois estamos como na Rússia do século dezanove, quando ele começou: ignorância, ignorância, ignorância.
Estamos na mesma mas pior, perfidamente pior, porque pior que ignorância é a ignorância educada, é a ignorância com calão técnico, com ideia de processo criativo, com ideia de que compõe personagens, e determina objectivos para a sua personagem e outros ecos de ecos de ecos de Stanislavski tão mal usados como qualquer outra coisa em terceira mão. Ignorância aqui não é analfabetismo, é analfabetismo funcional.
Continuamos a ver debitar texto, continuamos a ver representações sem nada lá dentro, com a secura que Stanislavski sentira há um século! Uma secura que atravessou anos e não conhece fim; uma seca interior em que nada sobrevive, nem o mais pequeno impulso de comportamento, nem a mais pequena sensação de seres vivos: tudo rasurado, tudo secado.
Os anos que passaram desde a morte de Stanislavski não são somente anos. São anos-luz, distância. São kilómetros que nos separam de uma civilização que poderíamos ser, de uma nação teatral que seja desenvolvida e não em vias de, ou mesmo subdesenvolvida.
Porque se Stanislavski está esquecido então das duas uma, ou somos mesmo muito bons ou somos uma vergonha. Ou somos mesmo melhores que ele, ou então não fazemos a mínima ideia do que andamos a fazer.
Setenta anos depois precisamos de heróis. Precisamos como de pão para a boca, porque o pão para um actor (e o actor é a célula fundamental do teatro, é o teatro) é a sua vida interior, em cena. Sem isto nada existe.
E como pode existir? Stanislavski diz-nos.
