Thursday, August 7, 2008

Stanislavski 70 anos depois

Faz hoje setenta anos que morreu Konstantin Stanislavski (5 de Janeiro de 1863 - 7 de Agosto de 1938).

O que é ele senão uma lenda?

Setenta anos depois, em Portugal, neste canto do mundo ocidental, num canto especialmente esquecido dos trânsitos destas coisas, podemos perguntar: Stanislavski... quem?

Setenta anos depois podemos perguntar se sequer Stanislavski chegou a Portugal, se terá demorado tanto tempo a sua viagem desde Moscovo, se terá alguma vez aqui chegado a sua insaciável vontade de perceber o actor.

Setenta anos depois podemos perguntar se estamos, neste cantinho que gerou um Camões para só mais tarde gerar um Pessoa, se estamos mais evoluídos, se estamos nós mais munidos de heróis, se estamos nós à altura de Stanislavski.

Setenta anos depois podemos perguntar se alguma vez, à maneira inversa de um Michel Strogoff (em vez de viajar para dentro da Rússia, mas - neste caso - para fora) se terá vindo até nós o seu livro, a sua fama, o seu bafo de génio, como se fora uma horda de tártaros que tudo arrasasse da nossa pobreza de cantinho, da nossa ignorância de encurralados por uma ditadura e por nós próprios.

Setenta anos depois podemos perguntar que é de um António Pedro, que é de um Redondo Júnior, que é de um Teatro-Estúdio do Salitre, que é do nosso século vinte? Que é do verdadeiro século vinte, o que toda a gente teve e de que nós tivemos tão pouco, o das revoluções industriais? Como uma criança que vê as prendas que os outros receberam e ela não, olhamos para fora.

Setenta anos depois precisamos de heróis, precisamos cada vez mais de heróis, precisamos de Stanislavski. Precisamos do Stanislavski que viveu e fundou o Teatro de Arte de Moscovo (com Nemirovitch-Dantchenko) precisamos do Stanislavski que encenou Tchékhov e Górki e viu-se grego com os simbolistas e se sentiu seco por dentro, ele que já conseguia fazer tudo em cena.

Precisamos deste Stanislavski que sentindo-se seco por dentro labutou ainda mais para perceber como evitar que isto acontecesse (ele que mantinha diários do seu trabalho e acumulou em fim de vida sessenta anos de páginas de toda uma experiência teatral).

Precisamos do Stanislavski porque, nas palavras de Jean Benedetti (seu grande grande tradutor): his systematic attempt to outline a psycho-physical technique for acting single-handedly revolutionised standards of acting in the theatre.

Veja-se: isoladamente, sozinho!

Precisamos deste Newton do teatro, deste homem que sozinho operou a mais incontornável e inultrapassável revolução do actor, que construiu um sistema que mais ninguém conseguiu igualar, que evidenciou algo que ainda hoje faz rir muitos grotescos ignorantes: uma gramática do actor.

Precisamos dele porque não sabemos nada, porque setenta anos depois é caso para dizer que terá morrido em vão, porque setenta anos depois não existe uma única tradução decente do seu livro, porque setenta anos depois estamos como na Rússia do século dezanove, quando ele começou: ignorância, ignorância, ignorância.

Estamos na mesma mas pior, perfidamente pior, porque pior que ignorância é a ignorância educada, é a ignorância com calão técnico, com ideia de processo criativo, com ideia de que compõe personagens, e determina objectivos para a sua personagem e outros ecos de ecos de ecos de Stanislavski tão mal usados como qualquer outra coisa em terceira mão. Ignorância aqui não é analfabetismo, é analfabetismo funcional.

Continuamos a ver debitar texto, continuamos a ver representações sem nada lá dentro, com a secura que Stanislavski sentira há um século! Uma secura que atravessou anos e não conhece fim; uma seca interior em que nada sobrevive, nem o mais pequeno impulso de comportamento, nem a mais pequena sensação de seres vivos: tudo rasurado, tudo secado.

Os anos que passaram desde a morte de Stanislavski não são somente anos. São anos-luz, distância. São kilómetros que nos separam de uma civilização que poderíamos ser, de uma nação teatral que seja desenvolvida e não em vias de, ou mesmo subdesenvolvida.

Porque se Stanislavski está esquecido então das duas uma, ou somos mesmo muito bons ou somos uma vergonha. Ou somos mesmo melhores que ele, ou então não fazemos a mínima ideia do que andamos a fazer.

Setenta anos depois precisamos de heróis. Precisamos como de pão para a boca, porque o pão para um actor (e o actor é a célula fundamental do teatro, é o teatro) é a sua vida interior, em cena. Sem isto nada existe.

E como pode existir? Stanislavski diz-nos.

Ditulis Oleh : Unknown // 3:45 AM
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