Há dias disseram-me que o choque de electricidade que sentimos ao tocar no carro depois de um passeio deve-se a electrões que foram roubados ao carro e que não se recuperaram senão ao tocarmos nele. Caso houvesse um contacto com a terra isso aconteceria, mas pneus, solas dos sapatos e tudo o mais é material não condutor.
É preciso um contacto com a terra para conduzir o trânsito dos electrões. E conduzir esse "caustic dread" de que fala Lou Reed. Sob pena de haver sempre choques.
São só electrões desavindos. Só isso. Irão todas para a terra agora que sabemos isso.
Obrigado.
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Tuesday, July 19, 2011
Lou Reed e a condução de electrões
Monday, July 18, 2011
Monday, July 11, 2011
O travão
Este é um conceito e ferramenta fundamental. A maior parte das pessoas não a tem ou não a tem conscientemente. A menor parte que a tem são por exemplo artistas marciais. O travão é a contenção, é saber reter-se, nos movimentos, nas palavras, na atenção.
Tenho visto gente adulta sem travão ou na língua ou nas acções, tenho visto muitas e muitas sessões de trabalho serem comprometidas por falta de travão.
Mas a realidade é que para se usar o travão é preciso uma grande atenção ao que se faz, e disciplina sobre o que se faz e quando se faz. E isso a maior parte das pessoas não está à vontade para fazer pois ainda impera o princípio da satisfação imediata: eu falo o que me vem à cabeça, eu faço o que me apetece, eu não me refreio.
As consequências para o trabalho são estas - não se trabalha. Porque nunca realmente se submete os nossos apetites ao propósito maior.
Ninguém ainda - senão uma pequena amostra de gente empenhada - percebe que o travão é indispensável no trabalho e que o trabalho (leia-se teatro) não é a vida, e que na vida corro apenas o risco de parecer e ser um cretino se fizer e disser o que me apetece no instante em que me apetece, mas no trabalho (leia-se teatro) tenho que refrear as minhas distracções, as minhas palavras e todas as minhas acções. Sabendo o que devo fazer, com quem devo fazê-lo e qual é o meu lugar.
Um exemplo comum de falta de travão é a ilusão da encenação colectiva: todos têm uma palavra a dizer sobre o que se deve fazer. Quando essa palavra é do encenador.
Outro exemplo vulgar de falta de travão é a conversa paralela entre alunos: têm algo de muito urgente a dizer um ao outro, quando a palavra é do professor e deve ser sobre assuntos da aula.
Ainda outro exemplo transversal: o telemóvel e tudo o que o envolva, da necessidade urgente em ver mensagens à preponderância da chamada (real ou eminente) sobre qualquer acontecimento terrestre, ensaios e aulas incluídos.
O travão é freio, é contenção, é exercido sobre tudo em nós, do físico ao psicológico. Visa pôr-nos a fazer o que é suposto fazermos, pretende ajudar-nos a estar nos carris.
Se estiver sempre a saltar para aqui e acolá, nunca estou pronto para o que devo fazer e nunca o farei bem.
E no que diz respeito ao teatro isto é claro: não se liga um actor dizendo "cria!", é necessário toda um periodo de acomodação. Que só se consegue com travão. Estar cedo no ensaio é ter travão, estar calado é ter travão, ouvir é ter travão. Para criar é preciso travão.
Nota: o travão também é conhecido mais genérica e abractamente por educação. No fundamental, e sem entrar em definções do mecanismo, é a mesma coisa e alguém com travão será sempre conhcido como pessoa educada.
Agradecimento a todos os mecanismos de educação pela presença de travão em mim e pela clamorosa ausência na esmagadora maioria dos seres humanos
Queria agradecer aos meus pais, aos meus professores de artes marciais (em especial a Joaquim Peixoto do Tae Kwon Do) e finalmente a Guennadi Bogdanov por me ensinarem o que é o travão e como travar-me. Coisa que me tem sido útil social e artisticamente. Para não dizer indispensável.
Queria agradecer a todos os sistemas de ensino, do pré-primário ao superior; dos milhares de pais às figuras exemplares públicas e privadas que não ensinaram, não têm ensinado e não vão ensinar a esmagadora maioria de seres humanos que vejo a não terem travão nem a travar-se.
Gostaria de agradecer o tipo de sociedade para o qual fui educado e que não existe, onde o egoísmo de cada seria refreado e educado.
Gostaria de agradecer a legiões e legiões de gente que me tem provado que vivemos num estado bárbaro, social e psicologicamente.
Agradeço também todos os momentos em que tive que me colocar em apuros ao preferir que o egoísmo de alguém não atropele a vida de quem nada tem a ver com isso. Agradeço duplamente pois duplamente me senti injustiçado pois depois de fazer algo quanto a isso me senti injustiçado e qualquer coisa mais, sempre de desgaste.
Gostaria de agradecer à mais completa falta de educação, cuidado, atenção que grassa de alto a baixo, desde o adolescente insuportável ao adulto autoritário. Gostaria de agradecer a todos os espécimes de gente humana que me têm envergonhado e que contudo se sentem incomodados por me sentir incomodado.
Gostaria também de agradecer a todas as situações de conflito que isto me tem dado, porque me lembra sempre a tal sociedade para a qual fui criado e que em Portugal não existe concerteza, mas que alimenta a minha fé num qualquer país estrangeiro.
Queria muito agradecer a todos os outros incomodados que nem as minhas acções disparatadas fizeram, e deixaram que acontecesse o que acontece sempre. Quero agradecer a esses especialmente pois o bom-senso afinal não é tudo e a ideia de sujar as mãos ou dar um passo repugna muita boa gente.
Quero agradecer à população em geral por tudo o que fazem (da menor para a maior escala) pensando que estão em casa, que o mundo é seu, que o ar é sua propriedade e que o outro é uma ilusão de óptica.
Só tenho pena de nunca nunca saber o que fazer e contudo meter-me em apuros, sempre desajeitado, a preferir não fazer de conta que não se passa nada e que não é um abuso.
Só tenho pena de me terem ensinado valores os meus pais, gestos técnicos e príncipios Joaquim Peixoto no Tae Kwon Do e Guennadi Bogdanov na Biomecânica. Só tenho pena de não me poderem ensinar as palavras mais certas, o olhar mais eficaz, para que não esteja sempre a sentir-me um pinheiro de Natal quando pergunto a um bárbaro se seria possível deixar de ser bárbaro.
Friday, July 8, 2011
Beber álcool antes de um ensaio, em grupo
Fará bem, fará mal?
Para conduzir uma viatura não devemos ter mais de x álcool no sangue - e no hálito. Porque isso afecta os nossos sentidos e capacidade de reacção. Porque há-de ser diferente para a criação?
Voltamos uma vez mais à distinção entre vida e teatro. Uma coisa é uma jantarada com amigos, outra coisa é saber o que comer e beber porque vou ensaiar em seguida.
Se temos cuidado com o nosso hálito por receio de operações stop porque não o teremos por causa do nosso trabalho em grupo?
E se não vos convencer o argumento rodoviário acrescento que é asqueroso contracenar ou estar nas cercanias de alguém com bafo alcoólico.
E se têm mesmo que beber porque isso faz parte da vossa inalienável maneira de ser, então isso tem o nome de alcoolismo. E um actor não pode ser alcoólico.
A distracção é como as cerejas, em ensaio
Uma sala de ensaio é uma sala de ensaio. Muita gente tem receio de salas assim pois mesmo sem o saberem cabalmente pressentem que a sala pede que sejamos severos connosco próprios e a maior parte das pessoas não está para aí voltada.
Mas esse esforço de severidade visa preparar-nos para ensaiar, para criar. E a distracção é o primeiro insecto a abater: a roupa do vizinho, ruídos, sussurros, cheiros até. Porque se não se erradica a distracção vem daí o pequeno caos virulento de uma coisa levar a outra, um comentário gera outro, uma conversa gera outra e depois andamos a comparar telemóveis e blutooth e os megapixel da máquina fotográfica...
Quando se sabe que a distracção num ensaio desvia-nos de ensaiar, então é tudo mais fácil. Pelo menos entre pessoas de bom carácter.
As horas para um actor dentro de um grupo
Quando combino um café com um amigo meu é justo que fique aborrecido, eu ou o meu amigo, se um de nós se atrasar. É verdade que hoje há telemóveis e avisamos que estamos a caminho, que algo nos reteve, que isto ou que aquilo. Mas não podemos dizer ao amigo (ou ele a nós) vai tomando o café que eu quando chegar apanho-te onde estiveres. Porque é um encontro que se faz com as duas pessoas e isto não faz sentido.
Com um ensaio, e em grupo, isto não só é o mesmo como é muito mais delicado: porque combinamos horas para criar. Para criarmos juntos, vejam bem. Muito para lá de uma conversa, de um café, muito perto de um encontro amoroso. Dizemos a que horas começaremos a criar? E... se um se atrasa, falta ou dá um pontapé a essa combinação isso acabou de tirar o tapete à criação. E aqui também não se pode dizer vai criando sem mim que quando eu chegar apanho-te onde estiveres.
Por isso os actores devem ser exemplares com as suas combinações, com as suas horas. Esse é o primeiro critério de fiabilidade por que um actor é avaliado entre pares. E é também o primeiro indício do respeito que tem pela criação.
Friday, July 1, 2011
Telemóvel = Tamagotchi?
Há uns anos havia aqueles brinquedos que precisavam de atenção: Tamagotchi. Tinha que se alimentar, dar carinho e ver se estavam bem.
Hoje em dia o Tamagotchi é o telemóvel: por algum motivo bizarro muita gente precisa de ver constantemente* se ele está bem - vão espreitar se ainda respira, tiram-no cuidadosamente do seu bolso no saco ou nas calças e, só depois de confirmarem que ainda dorme e que não aparenta nenhum sinal de doença, podem continuar a fazer o que faziam.
Em alguns casos essa coisa que faziam é ensaiar.
(Vê-se bem que para ver se o telemóvel está vivo descuidam completamente o vivo que devia ser o seu processo de criação.)
*como se estranhassem por exemplo o mundo não lhes ligar nenhuma nas horas de ensaio.
O bem comum ou ética para um professor
Numa escola em que dou aulas há professores que clamam que há muitos anos dão uma bibliografia que ainda não existe (leia-se: foi adquirida) na biblioteca. É claro que as bibliotecas deveriam estar fornecidas dos títulos pertinentes de cada área, é evidente que os alunos precisam de ter títulos acessíveis, é tudo muito bom...
Mas a verdade é que há professores que dizem publicamente estar há anos a reenviar os alunos para uma bibliografia a que os alunos não têm acesso. Isto para mim é grave: que aconteça uma vez compreende-se mas depois um professor deve raciocionar se isto beneficia as aulas, se isto está a funcionar para o bem comum.
Eu enfrentei o mesmo problema e resolvi o mesmo problema; há anos que contraponho "os livros que não havia comprei-os eu e agora estão na biblioteca". Como os alunos pagam o que ganho pensei em tempos reeinvestir algum desse dinheiro e esperei, procurei e encontrei os títulos mais indispensáveis.
O que ganho eu com isto? Estão lá os livros.
O que ganham os professores cujas bibliografias continuam inexistentes? O orgulho de repetirem publicamente que os livros na biblioteca não existem e que alguém devia resolver esse problema.
Eu acredito que esse alguém muitas vezes devemos ser nós.
