É necessário produzir saber. É essa a tarefa da Universidade. Há quem produza outras coisas, há quem produza sardinhas ou enlatados, mas a Universidade tem que produzir saber. Saber em forma, não de enlatados, mas de teoria e teoria em textos. Muitos textos.
Teoria é o que nos ajuda a organizar e a interpretar - a categorizar - o que fazemos e o que vemos. Em campos práticos como o da formação de actores a produção de saber, a explicitação e a investigação são tão necessárias como a própria experiência formativa, como as próprias experiências de aprendizagem.
A produção de saber a que nos referimos é, muito concretamente, a produção de publicações, textos, livros. É assim que se produz ciência, e se a Universidade não é um domínio científico então mais vale voltarmos à feitiçaria e aos xamans, que esses sim eram o que eram e norteavam-se por pressupostos míticos, que é o contrário da aprendizagem de um ofício.
Depois de Stanislavski, depois do esforço de Stanislavski em pôr por escrito o que faz um actor, não nos podemos dar ao luxo de negligenciar a produção de teoria sobre o que fazemos; ou de aglomerar os princípios que guiam a nossa prática artística e pedagógica; ou de estabelecer mais relações com outros eixos. Depois de Stanislavski não podemos virar as costas à produção de saber sobre este ofício e arte.
Muito menos no mais alto patamar do conhecimento e investigação: na Universidade.
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Wednesday, October 31, 2007
Aulas, Universidade e o Saber depois de Stanislavski
Tuesday, October 30, 2007
Jogos de competição e meritocracia
Que relação tem o mérito com o jogo?
Não será sempre uma questão de sorte? Ou de azar? Não será sempre uma questão de talento, de cunhas, de subornos, de intervenção divina, de merecimento ou falta de merecimento?
- O jogo foi bom, não ganhámos mas merecíamos ganhar.
Dizem os jogadores ou o seu treinador no fim, na conferência de imprensa.
Que tem o mérito a ver com isto?
Jogo e mérito:
Há jogos para os quais nos preparamos, para os quais tudo assenta nas nossas capacidades e em nenhuma outra coisa. Um jogo deste género é um hino à ordem, à justiça e ao mérito. Os nossos méritos conduzirão a resultados. Mas em que joga a sorte nisto?
Numa corrida ganhará o que chegar primeiro. Simples. Num jogo de bola, ganhará aquele que marcar mais golos. Simples. No bilhar o mesmo. No salto em altura é quem saltar mais alto. E quem saltar mais longe no salto em comprimento. E quem levantar maior peso ganhará no halterofilismo. Simples e honesto.
Há pontos, golos, quilos, centímetros ou segundos que marcam a diferença. As regras são iguais para todos; as condições (o campo, o relvado, as categorias, o número de jogadores e etc.) são iguais para todos. Isto é o mais equilibrado que pode haver. E mais justo também. Ganhará quem conseguir mais e quem conseguir ser mais rápido, mais forte, mais possante, mais preciso. É sempre uma questão de ser mais. Conseguir ser mais é um mérito.
Mérito é o contrário das seguintes situações:
- ser abençoado por Deus;
- beneficiar da divina providência;
- gozar da intervenção dos ventos da sorte;
- escapar a uma maré de azar.
Nestes jogos - que são de competição, como nos diz Roger Callois - impera unicamente a vitória do mérito e, portanto, da meritocracia.
Quem não ganha que não se queixe. Fizessem por isso.
Monday, October 29, 2007
"Está mal feito" ou a Verosimilhança
Porque será que dizemos "Está mal feito" quando nos desagrada um filme a meio, e nos desinteressa de imediato, deixando-nos mal-dispostos?
A que nos referimos ao certo quando dizemos que aquele momento, cena, gesto, situação estava "mal feito"?
"Está mal feito."
A resposta a isto é... Jogo.
E poderíamos porventura dizê-lo de outra maneira: verosimilhança.
Recuemos um pouco, ao actor. O que fazemos, quando fazemos teatro, é um jogo. É um jogo em que as regras são da coerência ao ponto de partida. É assim a brincar às corridas de carros, com carrinhos pequeninos, e é assim a fazer de Hamlet. Nem os carros começam a voar, nem Hamlet voará muito menos. Porquê? Porque não é essa a brincadeira. Porque isso não bateria certo com a brincadeira, com o faz-de-conta instituído no momento.
As coisas podem até desenvolver-se e modificar-se mas assim como os jogadores de Andebol não poderão, de repente, começar a jogar pontapeando a bola (pois esse não é o jogo deles) no faz-de-conta (ou nos jogos de simulacro, para ser mais claro) não se poderá mudar a regra, que é a da verosimilhança.
Verosimilhança é parecer verdadeiro. Seja o que for, seja Hamlet ou um Dinossauro.
Brincamos às pistolas, aos Índios e aos Cowboys, e é neste contexto - com as características de uns e outros - que brincaremos; qualquer desvio (o índio desatar a disparar com pistola, por exemplo) terá que ser muito bem justificado, muito bem defendido, de acordo com a coerência do ponto de partida ("este índio apanhou uma espingarda que estava no chão e era de um cowboy morto..." e etc). Sob pena de se quebrar a fantasia e esse tabuleiro invisível em que brincam os jogadores.
A verosimilhança é, portanto, o contexto a que os jogadores/actores obedecem e a partir do qual fazem desenvolver o jogo. Contexto fantasioso que existe em igual medida para o espectador, que é um jogador que não intervém, apenas assiste.
No jogo de faz-de-conta (uma peça, um filme...) é pedido ao espectador que vá na história, que acompanhe, que também faça de conta que aquele que vemos ali é Hamlet, que aquilo é um castelo na Dinamarca; ou que estamos a ver duas naves espaciais a lutarem em pleno céu galáctico. Ou um Dinossauro gigante a atacar uma cidade.
Ao espectador é-lhe pedido isto e isto já é muito. É uma espécie de procedimento para entrar no reino do simulacro, do faz-de-conta. E enquanto espectadores cedemos o mais infantil de nós, a nossa vontade de fantasiar, como quem cede os sapatos à entrada de uma casa especial. Mas é apenas um empréstimo...
Ele - o espectador - ao assistir joga e vibra e espera porque acredita e quer acreditar. Para o fazer parte do mesmo ponto de partida dos jogadores que intervêem.
Se o acordo com o espectador for quebrado, então nada feito. Se o desenvolvimento da fantasia for feito a revelia dele, se ele não assistir, não acompanhar nem tomar parte então acusará a quebra da regra da coerência e da verosimilhança com a fantasia e dirá, não jogando mais, ultrajado por ter sido enganado "Está mal feito".
"Está mal feito" significa "Não brinco mais".
Friday, October 26, 2007
O que é um diário de bordo?
O que é um diário de bordo? Que se escreve num diário de bordo? Para que serve? Que forma tem? Como podemos reconhecê-lo se o virmos na rua?
Um diário de bordo é de facto o diário do que se passa a bordo, neste caso não de um navio mas da viagem e da experiência que vai vivendo quem o escreve.
Pode ser somente um registo cartográfico do que se se fez ou por onde se andou; pode ser uma colecção de notas breves de turismo sobre os atractivos de cada terra ou paragem ou momento forte; pode ser uma lista de recados a si próprio, de afazeres no seu dia-a-dia a bordo; pode ser um conjunto de cartas mandadas ou rascunhadas que contam novidades, felicidades, tédios e visões.
Muitas visões (isto é importante).
Quando se está a bordo (de qualquer navio, viagem ou experiência) tem-se muitas visões. O diário de bordo até pode ser um bestiário cheio de iluminuras a descrever as visões, miragens, pressentimentos, premonições, imaginações ou eventuais alucinações do seu autor (estas últimas são muito comuns no alto mar, dizem...).
Sem fantasia ninguém navega, sem imaginação não há caminho marítimo para lado nenhum. Um diário de bordo pode ser também a adivinhação ou projecto do próximo passo, disso que ficará depois da próxima curva do mar.
O diário desta viagem refere-se portanto apenas a uma pessoa: ao seu comandante. Faz-se interpretações do que se vai passando a bordo deste navio de carne e sangue e alma e respiração: todas as despesas e flutuações e incidentes e suspeitas internas de amotinação ou programa de festas e manobras para arrepiar caminho.
É como se o comandante descrevesse a viagem que se passa dentro dele.
Tuesday, October 23, 2007
O que é o jogo?
Afinal o que é o jogo? De que falamos quando falamos de jogo?
Jogo é desporto? Jogo é quando está alguma coisa em jogo? Jogo é brincar? Afinal o que é?
Jogo será o que as crianças fazem? Jogo será tudo o que vem em tabuleiros ou tudo o que está entre quatro linhas? Serão jogos tudo aquilo em que se usa sapatilhas? Porque são jogos os jogos olímpicos? Será que jogo é tudo aquilo em que se corre? Será que jogo é tudo o que é competição? O que é o jogo afinal?
Roger Callois, antropólogo e filósofo francês (1913-1978) preocupou-se não só em esclarecer o que era o jogo mas como se categorizaria o jogo. É claro que o seu livro Os Jogos e os Homens tem como ponto de partida as noções de Johan Huizinga, pensador holandês (1872-1945), que antes dele tinha apontado a universalidade do jogo (cf: Homo Ludens).
Roger Callois define o jogo como uma actividade
- livre
- delimitada no espaço e no tempo;
- incerta no seu desenrolar e no seu resultado;
- que não gera nem bens, nem riqueza, nem elementos novos de qualquer natureza;
- que é acompanhada de uma consciência específica de outra realidade;
- sujeita a convenções.
Podemos encarar estas características como princípios que definem o jogo, e sem elas estaremos na presença de outra coisa, mas não de Jogo.
Vejamos um exemplo: o Xadrez.
- No Xadrez os seus participantes decidem jogar (é livre);
- Usam um tabuleiro específico e só começam quando movem uma primeira peça (é delimitado no espaço e no tempo);
- Não sabem quem vencerá, como e/ou por quanto (é incerto no seu desenrolar e resultado);
- Jogar Xadrez não produz nem visa produzir senão o prazer de jogar, distingue-se do trabalho exactamente porque não resultará daqui um produto (não se gerarão nem bens, nem riqueza, nem elementos novos de qualquer natureza);
- A atenção de cada jogador de Xadrez está nas suas movimentações e nas do outro jogador, esquecendo tudo o que se passa à sua volta, no mundo ou cercanias (há uma consciência específica de outra realidade);
- Os seus jogadores obedecem estritamente às regras que ditam a lógica de poderes e movimentação de cada peça (estão, portanto, sujeitos a convenções).
Ou seja, o jogo pode ser muita coisa, desde que seja jogo.
Monday, October 22, 2007
Simulacro, Ritual, Praxe e Bullying
Uma criança foge de um adulto que faz de Monstro, ela sabe que é brincadeira e foge e ri; ela gosta do susto e gosta que aquele seja um Monstro convencionado.
Este é um jogo e há aqui uma grande dose de simulacro: a criança e o adulto fazem de conta que quem persegue é um Monstro e que fará inevitavelmente mal ao perseguido quando e se o agarrar. Nunca se chega a causar mal, na realidade, pois isso terminaria o jogo dado que este é apenas um... jogo.
E o Monstro, ainda sob a forma de jogo, emergirá mais tarde. Já não será alguém tão diametralmente diferente quanto um adulto, mas ainda com assinalável diferença de estatuto. Em rituais de iniciação. Um desses rituais é o das escolas (mais ou menos de ensino superior): o Monstro continua temível, mas a perseguição é mais complexa. O jogo do Monstro tornou-se agora um ritual de iniciação, de passagem para uma idade adulta, para outro patamar, para a entrada numa sociedade, clube ou grupo.
Diz-nos Roger Callois, no seu livro Os Jogos e os Homens, que os rituais são jogos de máscaras, são jogos de simulacro. A personagem do iniciador é dotada de uma roupa, voz e comportamento diferente do normal, diferente até do seu intérprete, do homem que é possuído. Assume o carácter de Monstro, e representa a dificuldade e o segredo. Conduz a experiência de provação e medo até que se possa dizer ao iniciado Agora és um de nós.
O direito de pertencer ao mesmo grupo será também ele mais tarde o direito de poder fazer a personagem e ser o Monstro perante outros. Referia-se Callois aos arcaicos rituais tribais de passagem para a idade adulta e o mesmo podemos observar nos rituais das escolas de ensino superior, na chamada praxe académica. O medo é experimentado e as provas são passadas. O ritual de iniciação é novamente feito pelos mais velhos (e mais fortes/sabedores) aos mais novos (e mais fracos/ignorantes).
Esse ritual que, como a perseguição do Monstro referida no ínicio, a ser feito segundo as leis do jogo (voluntário, livre e de concordância mútua nas regras do jogo) tem neste contexto escolar uma implicação interessante: é um momento em que se explicita pela festa dos excessos o sempre latente Bullying. Com a novidade, no entanto, de aqui não se infligir o Bullying, antes jogar-se a ele.
(NOTA: Jogar-se-á ao Bullying SE houver consentimento mútuo, ou então SERÁ pura e simplesmente Bullying.)
Com o consentimento de ambas as partes joga-se à humilhação, à agressão e à submissão dos mais fracos aos mais fortes. Tudo feito entre os pares, como o Bullying.
Brinca-se - num espaço e tempo definido e com regras definidas (é uma espécie de Rei manda, gato e rato, gincana e faz-de-conta) - ao Bullying: o Monstro grita, esbraceja, veste-se e comporta-se de modo assustador, ameaça e manda. Mas o Monstro é um par do perseguido em idade e situação na hierarquia social, nada o distingue.
E o medo unirá os perseguidos, à maneira do filme A Vila de M. Night Shyamalan, para mais tarde poderem ser eles próprios perseguidores e fazer de conta que são o Monstro, vestir-se como ele e comportar-se como ele e conduzir as provações do jogo de iniciação a quem o queira jogar.
Saturday, October 20, 2007
A pistola de plástico
Era uma vez um rapazinho que, sem saber porquê, andava sempre com uma pistola de plástico.
A pistola fazia do rapazinho um guerreiro, assim como as adagas, ou as matracas, ou tudo que era brinquedo bélico, e eram-no exactamente isso: brinquedos.
A pistola sublimava a agressividade do rapazinho e acompanhava-o sob muitas formas, sob muitas formas de armas ou fantasias do género, e assim o rapazinho se sossegava e sentia magicamente que era forte e era alguém e que pertencia a algum lado; era esse o valor da pistola de plástico.
Da agressividade que a pistola disparava passou a despoletar ironia no rapazinho que agora era um jovem, um adultozinho. Como numa enorme partida, como com um enorme segredo, ao ter a pistola sem que ninguém soubesse. A pistola de plástico era um brinquedo, uma máscara, uma coisa mágica especialmente porque ele sabia-o e isso só lhe servia por servir a imaginação de filmes e bandas desenhadas. Filmes e filmes, e heróis e bandas desenhadas e heróis, e tudo o que era fatal e decidido, e actos heróicos, e tudo o que era importante e comovente. Como se tudo fosse tão importante, tão comovente quanto uma luta, tão decisivo quanto uma luta.
Mais tarde a pistola foi ficando de lado, assim como as revistas de banda desenhada (dezenas, centenas delas empilhadas, guardadas numa caixa de vime). A pistola de plástico, com o seu mágico guerreiro, tornou-se outras coisas, tornou-se as artes marciais e tornou-se inclusivamente o próprio uso da palavra.
O rapazinho tinha-se tornado incontornavelmente um jovem adulto, tinha ido estudar algo e ainda tudo lhe parecia como a própria pistola de plástico: fruto da sua imaginação. Tudo lhe parecia tão despoletador de ironia e fantasia quanto a pistola de plástico. Porque na verdade nada era possível assim, tão ao sabor do vento assim; tornou-se actor e talvez isto também fosse incontornável dado que funcionava tão bem em registo de fantasia. E não se deu conta, como quando andamos a brincar, do tempo a passar, como quando não damos conta que fomos andar de bicicleta até muito longe. Talvez tenha sido isso que aconteceu com o rapazinho quando, de tempos em tempos, dava-se conta que tinham passado mais dois ou três ou cinco ou dez anos.
E nesse tempo passado tinha arrastado consigo, trazido consigo, como quem traz preso a si inevitáveis silvas depois de andar de bicicleta, leituras, ou amores, ou algo tão comovente, ou outras pessoas heróicas quanto os super-heróis, outras pessoas com nomes estrangeiros, com uma força e vitórias sobre-humanas - como os super heróis dos filmes ou das bandas desenhadas - pessoas que eram grandes e poderosas, que era sabedoras (as maiores do mundo) que eram fortes (os mais fortes do mundo) que eram mágicas (as mais mágicas do mundo), que eram elas próprias símbolos, e eram admiração e comoção.
O rapazinho, agora adulto, depois de jovem adulto, tinha tido e encontrado ao longo dos anos novos heróis pelos caminhos por onde tinha andado, como quem compara cromos ("estes sim é que são os maiores"). Tinha brincado? Sim, tinha brincado, mas parecia que o mundo para o qual ele tinha sido convidado (ou onde ele se encontrava) não era bem o dele; parecia que qualquer tentativa em se adaptar custava imediatamente um preço muito alto; parecia que a própria imaginação, a própria ironia, ou ingenuidade, se retiravam para um canto longe, para outro lugar; parecia que o próprio amor às coisas ou às pessoas já não funcionava, como um motor gripado.
Anos passaram e o rapazinho, agora um homem, um jovem homem, deu por si (mais uma vez, por via da sua imaginação, ou quase) a aprender uma coisa que era nova para ele, a aprender para a ensinar: ensinar a jogar. E isso - como quando se lê um poema que diz o que sentimos sem que o saibamos dizer ou aperceber - parece que lhe foi dando de volta o que faltava, parece que lhe foi dizendo Isto aqui é o que tu és: jogo.
Não era nada mais senão a comoção, o divertido, o mágico; era pensar-se como criança, como rapazinho, como rapazinho com corpo e vida e inteligência de homem. Foi ao pensar JOGO, ao bater com a mão na cabeça, que disse É isto mesmo, é jogo o que andei a fazer e a perseguir estes anos e este tempo todo, é jogo, é jogo mágico de andarmos com pistolas só porque é divertido, de termos heróis e querermos ser como nos filmes e sermos mágicos e termos símbolos e nos comovermos com as pessoas e precisarmos do contacto e de andar de bicicleta uns com os outros.
Era o jogo. Portanto, passados muitos anos depois, a pistola de plástico voltou às mãos do rapazinho e ele percebeu porque havia uma pistola sob tantas formas.
Como uma solução que se percebe depois de matutar muito num enigma ou num problema, vinha-lhe sempre à cabeça: Caramba, era o jogo; afinal sempre tinha sido o jogo!
Friday, October 19, 2007
Jogo como processo criativo
O Jogo tem sido sobejamente utilizado, com a liberdade (e libertação) que lhe é inerente, na criação artística da literatura às artes plásticas e ao cinema.
Já se colou imagens e objectos a outras imagens e objectos; já se colou frases a outras que lhe eram alheias; já se escreveu sem parar fazendo associações livres; já se atirou e já se derramou tintas por cima de superfícies ou superficies por cima de tintas; já se deslocou objectos de um contexto para outros; já se montou as mesmas sequências de filme com várias músicas (toda a montagem de filme é um grande jogo...) e já se fez combinações aleatórias de música e dança.
O acaso e o aleatório têm sido ferramentas extraordinárias na descoberta de sentidos novos, em particular para quem o faz. Do mesmo modo, pensando o performer como ele mesmo uma máquina de montagem de gestos, sons e sentidos, (noção que nos vem de Eugenio Barba no seu Dicionário de Antropologia Teatral), podemos nós também utilizar o acaso e as múltiplas combinações para ir mais longe na busca de sentidos e de estimulação criativa no que fazemos: montando aleatoriamente formas diferentes.
Mexamos pois com as formas do actor. Com a fala e o gesto. Combinemos, sem propósito - somente porque nos apetece - gestos e falas, formas díspares, formas antagónicas. Por exemplo, dentro da fala, façamos acentuações decididas arbitrariamente (adjectivos, ou palavras começadas por A, ou só finais de frase...) ou muito rápido ou piano, ou forte; combinemos essas formas, esses elementos de forma e haveremos de ter sentidos novos, experimentando a liberdade da improvisação de irmos, não pelo sentido à forma, mas pelo seu exacto contrário.
Reflitamos por momentos sobre o que achamos mais importante na fala e no movimento. Rudolf von Laban fê-lo em relação a este último, e é um óptimo recurso a sua observação do movimento humano, com as suas enormes possibilidades: resta-nos brincar com essas possibilidades, experimentando-as. Nem que tiremos à sorte como muitos fizeram antes de nós, nas artes plásticas por exemplo, para decidir combinações de que não queriam ter o poder da decisão. O teatro é jogo, a decisão virá depois, muito depois de termos jogado.
Uma construção imprevisível espera-nos, uma colagem inédita aguarda-nos, para que depois, saciados pela comoção dos sentidos, ou esclarecidos quanto às possibilidades desse objecto cénico - que somos nós com um texto ou uma situação - saiamos libertos, um pouco mais, dos nossos limites habituais.
O limite na verdade está apenas na nossa vontade de brincar.
Thursday, October 18, 2007
Elogio a Stanislavski
Como actores e professores a nossa cultura teatral assenta sobre os ombros de um homem de há cem anos.
A nossa cultura técnica, aquilo que entendemos (bem ou mal) sobre o actor, sobre a representação, esse faz de conta profissional, assenta sobre um único homem: Konstantin Stanislavski.
Um século passou, cem anos nos separam desse russo extraordinário, desse investigador e pedagogo incansável e tudo o que fazemos ainda - não obstante todas as evoluções sociais, científicas e, por consequência, dramatúrgicas - nunca nos levou tão perto da clarividência quanto a ele, na altura.
Stanislavski foi o primeiro (e o maior) a sistematizar o funcionamento da anatomia dessa imaginação dramática; foi quem nos disse que precisávamos de alimentar e provocar a sensibilidade; foi quem observou, diagnosticou e descreveu problemas dos actores, e o fez de modo a nos vermos reconhecidos nas nossas tolas suposições, nos nossos receios, nos nossos desmazelos ou esquecimentos, nas nossas faltas de atenção para com as faíscas que surgem, fios que só falta puxar; foi o grande cientista das leis da criatividade do actor, foi o grande revolucionador.
Stanislavski é o Newton da arte do actor.
Wednesday, October 17, 2007
Training específico e Training geral
Ora bem, existe uma preparação do actor (falemos do actor e da sua técnica agora, por instantes, longe da criança e até da expressão dramática) o actor, portanto, precisa e procura uma preparação, e essa preparação se for constante é um treino, a que chamamos, pela internacionalização do termo, training: esse training deverá cobrir as áreas, por assim dizer, mais requeridas (ou mesmo mais queridas) desse actor, que pertence obviamente por sua vez a uma geração de actores, de valores, de técnicas e de culturas diferentes de outros de outros tempos e lugares.
O treino dizia, esse training, poderá ser de duas maneiras: ou o actor está a preparar as suas ferramentas, como um pintor que lava os pinceis ou um violinista faz escalas; ou então prepara-se para algo mais específico, como uma preparação em especial. Chamemos específico a este training; há o geral que é para pôr tudo em ordem e funcional (como um motor que se vá arrancando regularmente para que não gripe) e o específico, que é como que uma preparação desportiva para uma prova em especial (correr pela montanha ou nadar muitos quilómetros).
Não é habitual nem um nem outro training em Portugal. Tem-se algumas luzes à conta da disseminação de Grotowski, de Eugenio Barba e, mais remotamente (em relação a este assunto do treino) de Stanislavski. Uma peça ou uma produção de algum género requererá que se preprare em especial para ela, que se aqueça e treine as suas relações de força, as pulsões que estão mais presentes e até mesmo o conjunto de acções e situações.
Mas, uma vez mais, em Portugal este não é um trabalho nem usual nem popular. No entanto directores inteligentes sabem fazê-lo, sabem que o actor precisa de ser carregado com memórias, que precisa lhe sejam acordadas certas partes dele, (de que a violência e o carinho são exemplos, extremos é certo mas exemplos).
Tuesday, October 16, 2007
Para que serve a expressão dramática?
Para que serve afinal a expressão dramática? Sabemos que não é propriamente teatro mas que se lhe assemelha; o nome lembra-nos outras expressões como a plástica ou a musical; mas se não se faz trabalhos plásticos, se não se faz música e, também, se não se faz teatro, então o que se faz e para que serve?
A expressão dramática de facto não é teatro, não é a arte do teatro, não é a criação em teatro e nem lhe importa sê-lo. A expressão dramática ocupa um papel preciso, que é necessariamente inútil como arte (como veremos adiante) mas indispensável como ponte da infância para a arte; a expressão dramática é um modo organizado de recuperar e desenvolver a vontade exploratória simbólica (de si, do seu corpo e da relação com o mundo e o outro) que se capitula algures entre os cinco e os seis anos; pode mesmo ser uma ponte fantástica entre essa vontade exploratória e a idade adulta e pode ser, como se falássemos mesmo de territórios geográficos distintos, uma ponte que ajude a voltar um pouco atrás antes de termos chegado à vontade de espectador, à vontade de teatro, ao desejo de teatro, como lhe chama Isabel Alves Costa.
Assim se lida com o problema de já ter passado há muito para esse lado (o da relação com o espectador) sem ter a mesma relação consigo memso, a tal relação de exploração simbólica, relação privada, sem juízes, sem finalização, como se estivesse tudo em processo, como se ainda existisse a lógica de jogo.
A expressão dramática é então uma espécie de jogo simbólico não espontâneo, uma segunda via, uma segunda hipótese. É importante porque põe o seu praticante (ou aluno, ou actor) em contacto consigo mesmo e com as suas sensações pois pôe-nas em primeiro plano, novamente; a expressão dramática assenta na estimulação das imagens, da imaginação, das sensações e dos sentidos, que não levará a produto nenhum; assenta no jogo que, recordadndo a concepção de Roger Callois, não tem finalidade senão em ele mesmo e não produz coisa alguma, incluindo bens artísticos.
A expressão dramática é um jogo teatral que não pretende produzir teatro, sob pena de deixar de ser jogo, e que serve somente - como todos os jogos - o prazer de jogar dos seus praticantes.
Monday, October 15, 2007
Livros: "A Educadora de Infância - Traço de união entre a teoria e a prática" de Marília Mendonça
Este livro diz-nos respeito porque fala do jardim de infância, porque fala da especificidade do crescimento durante a infância e a especificidade da sua educação; porque fala da necessária amplitude de funções do educador de infância; porque fala de um projecto educativo em particular que anda à volta do jogo dramático espontâneo.
Este é um case study sobre uma educadora de infância de um jardim de infãncia português algures entre o final dos anos oitenta e princípio dos anos noventa do séc XX. Põe em evidência as teorias que essa educadora reivindica como suas referências, em contraste com as suas práticas no dia-a-dia do trabalho (com análises críticas de umas e outras da autora, à luz de outras práticas, pedagogias e teorias). É um livro alicerçado à volta da distância entre teoria e prática e da necessidade de criar-se uma teoria apoiada na prática, e na prática de hoje (da educação de infância).
Conclui-se que as práticas (o tal habitus da educadora) diferem das teorias em que se radica e que mesmo estas importaria rever, dado que o cruzamento de teorias é apontado como o mais adequado à realidade complexa da criança em desenvolvimento, assim como é sugerido tentar perceber por que teorias trabalha cada um, na realidade, no seu dia-a-dia.
Nas práticas descritas deste jardim de infância o jogo dramático espontâneo é apresentado como o jogo por excelência no projecto educativo da educadora (e a aprendizagem pelo jogo é aqui bem acentuada): existem cenários, barcos, redes, pontes, e mais objectos e espaços copiados da realidade circundante, tudo feito ou adaptado pelas crianças, em função do projecto pedagógico da educadora; existe tempo e espaço, tudo lhes está facilitado para que aconteça o jogo.
Quanto a isto a autora, Marília Mendonça, aponta algumas questões importantes:
- qual deverá ser a intervenção da educadora?
- dever-se-á interromper o próprio jogo espontâneo para dar início a actividades planificadas?
- será realmente necessária ou mesmo benéfica a vinda de especialistas (como o de ginástica, ou, acescentamos nós, de teatro...) que vêm fazer actividades com as crianças?
Estas questões motivam-nos outras sobre o jogo dramático no jardim de infância:
- como pode ser estimulado enquanto espontâneo e como pode ser tornado parte, não de uma ocupação, mas do projecto educativo?
- como munir os educadores de ferramentas que os ajudem a estimular e intervir, e orientar esse jogo dramático, de modo a dispensar elementos exteriores (os chamados especialistas - em teatro, neste caso)?
- como e quando dar o salto entre o jogo dramático enquanto expressão dramática, que se baseia nos seus actores, e o teatro com a sua preocupação de espectáculo, centrado no espectador e no que se vê?
MENDONÇA, Marília: A Educadora de Infância - Traço de união entre a teoria e a prática Colecção Horizontes da Didática, Edições Asa, Porto 1994
95 págs.
Sunday, October 14, 2007
E para onde foi o jogo simbólico?
Em crianças, aí pelos dois anos, começamos a brincar simbolicamente, ou seja, começamos a desenhar, a pintar, a fazer de conta; a coisa continua por algum tempo e desenvolve-se, assim como se desenvolve o pensamento simbólico que lhe está na origem, o príncípio do pensamento abstractizante; da pulsão espontânea vem a vontade de perfeição - isso vê-se nos desenhos que procuram proporções semelhantes à realidade, assim como na verosimilhança e composição nos jogos dramáticos.
E depois, e depois desses cinco, seis anos? que se passa com esse jogo espontâneo simbólico? Para onde irá? Para onde irá essa emergência? Será que se irradica, que cumpre a sua função e desaparece? Será que se sublima em outros jogos mais subtis?
O certo é que se perde (e é natural que assim seja) o carácter de espontâneo, de impensado, de pulsão, para procurar espaços onde possa acontecer, onde se possa timidamente rebentar; onde o indívíduo, já não mais uma criança, procura ele próprio uma aberta para que aconteça pintar e cantar e fazer de conta (mais tarde chamado de "representar" ou "fazer teatro").
Parece que durante a dolescência se passam anos de limbo onde isso já não é mais espontâneo, nem se sente que é algo que apeteça fazer, por escolha. É exactamente por escolha, mais tarde, que se inscreve em aulas, worshops, clubes, escolas e lá se faz, de modo mais organizado, aquilo a que se chamou (no caso do jogo dramático) expressão dramática. Que afinal será um jogo dramático organizado para aqueles já não o fazem espontaneamente, porque já não crianças: brinca-se com objectos, com roupas, com gestos, com a voz, com o outro, com disfarces, e com muitas sensações que se procura despertar, como quando essa exploração dos sentidos era ditado por algo incontrolável e inconsciente, na infância.
Saturday, October 13, 2007
jogo simbólico + jogo motor = jogo dramático
Jogo dramático é um jogo em que o jogador faz, ele próprio, de conta; jogo simbólico é quando o jogador representa, por qualquer meio, outra coisa qualquer; jogo motor é um jogo que exige o movimento ou a motricidade do jogador.
Se dermos a um jogo motor uma situação simbólica esse jogo passa a ser jogado em duas frentes numa só: psicomotricidade. É aqui que se situa, por excelência, desde o dealbar dos tempos da evolução de cada um, o jogo dramático: experiência conjunta da imaginação e do corpo.
Nem sempre é mais jogo motor que jogo simbólico, e nem sempre é mais jogo simbólico que jogo motor. A distribuição entre estes dois dependerá de querer levar mais ou menos longe o jogo dramático por esta ou aquela via. Ou antes, por motivos pedagógicos ou metodologia, podemos apelar mais ao aspecto motor ou mais ao aspecto simbólico. Ou até primeiro mais a um, e depois mais a outro.
Ainda que, no que parece ser uma auto-didática do jogo (o facto de o jogo ensinar a jogar), seja comum partir-se do motor para o simbólico ou, por outras palavras, do mecânico para o imaginativo, da regra para a liberdade.
Friday, October 12, 2007
Técnica e Training
O actor tem uma técnica. Assim como a tem um violoncelista, assim como tem um pintor. É uma técnica de composição, de arrumação, de organização de elementos por um lado e, por outro, é ao mesmo tempo uma psicotécnica, uma técnica para si mesmo, uma técnica para estimular a sua imaginação.
Ou seja, técnica é organização e imaginação: disposição dos elementos sob muitas formas, formas essas que despertam constantemente algo vivo em quem as faz, neste caso no actor. Se for somente execução, somente organização, é coisa sem significado. Poder-se-á fazer os gestos e movimentos todos e dizer as palavras todas e mesmo assim não se terá uma verdadeira interpretação, uma criação (senão nada mais que alguém a fazer todos os gestos e movimentos e a dizer todas as palavras, mesmo que sejam muito bem ditas as palavras e muito bem marcados os gestos).
Porque uma criação em teatro é uma constante recriação, é um acender, é um crepitar de uma fogueira algures dentro dos olhos, bem lá atrás, perto da memória, uma fogueira de índios e cowboys, uma fogueira de pradaria, uma fogueira que ilumina a noite cinzenta do nada, que ilumina, como farol, os caminhos que se pensavam batidos da realidade, da nossa realidade.
Ter técnica, verdadeira psicotécnica, é conseguir fazer boas interpretações, verdadeiras criações. Ter técnica é saber dispôr as coisas, jogar com as peças, jogar com essas variáveis que envolvem voz e corpo, mas sempre ao serviço da imaginação - para que faísque mais outra coisa, como frase que vem atrás de frase quando se escreve ou quando, mais corriqueiramente, se conversa.
Que essa técnica seja aprendida (por livros, por observação, por ensino, por conversas, por ideias que se se tem ou conclusões que se tira) não há dúvida, mas também não há dúvida que esse domínio, essa ginástica de baralhar e voltar a dar tem que ser habituado, usado, ginasticado. A mão que serve as cartas (que neste caso é a mão, o pé, e o resto do corpo e voz do actor) tem que estar com os seus dedinhos todos articulados, ágeis, muito bem habituados, vivos, sempre a brincarem com a imaginação. Isto é o Training. É estar em forma com a sua psicotécnica.
Seja que técnica for (ou modo, estilo, estética de organizar palavras e gestos) ou mistura delas, sejam técnicas inventadas, técnicas deduzidas de um tratado, de uma outra interpretação ou mesmo técnicas ditadas por Deus, essa técnica a não ser exercitada perde-se, enfarinha-se e esquece-se. Training. Nisto o actor é como um atleta: se não corre, deixa de conseguir correr. Se não se exercita com as suas possibilidades, então perde a mão. E passamos a ter um violoncelista com mão bôta, ou um actor que (no seu melhor) fará o que lhe mandam, sem que possa fazer o que faz um actor que é meter-se dentro de palavras e de movimentos.
Há muitos Trainings, assim como há muitas técnicas, e todos são válidos se despertarem a imaginação e todos são inúteis se não o fizerem. Seja qual for a pedagogia, ou a abordagem que se prefira, se não excitam ideias, vontades e novas possibilidades, se a imaginação - como um rio - não está habituada a descobrir novos caminhos, então essa prática é seca e árida e mais vale largar para ler um bom livro.
É que Training é como a técnica, se não serve para a criação, então não serve para nada.
Thursday, October 11, 2007
Bibliografia de referência sobre Jogo Dramático
De entre uma míriade de livros de jogos, recolhas, invenções, adaptações, colecções, que livro escolher?, ou antes, que via, que caminho, que jogos, se não os podemos fazer a todos? Que livros senão todos porque toda a experiência é boa e nos matura?, ou que livros senão nenhum porque não há um que seja o tal? Impõe-se a questão porquê este e não outro, que critérios e que escolha, que jogos escolher quando é para escolher jogos, que propósito, que fazer? Que filosofia, portanto?
Clive Barker, em Theatre Games, oferece-nos finalmente uma filosofia ao serviço da aprendizagem e treino teatral: pelo jogo trabalha-se, ou lida-se (termo mais dele), com fundamentos do ser humano tão primordiais, tão primaciais como a verticalidade (o grande cabaz psicomotor de Clive Barker, unindo o que somos ao modo como e porque nos movemos) e da verticalidade (ou vice-versa) à raíz das reacções humanas, ao fluxo ininterrupto (ou quase) de impulsos e mensagens nervosas entre espinal medula e cérebro (ou a parte mais antiga deste, a parte que é responsável pela protecção do perigo, e que também é a mesma que está em jogo quando estamos... em jogo), falando da reacção e dos vários skills do actor a desenvolver:
- um uso de corpo que é mais exigente que o quotidiano
- um uso da voz que é mais exigente que o quotidiano
- capacidade de simular comportamentos que não são os dele
- capacidade de reagir espontaneamente a situações conhecidas por ele
- capacidade de fazer todo o anterior repetidas vezes
Clive Barker aponta o jogo (no que é um grande fundamento teórico-prático para o jogo dramático) como o modo de treinar e levar actores a aprender esses skills sem que disso se dêem conta, pois embalados pelo desafio do lúdico vão explorando técnica enquanto contornam graciosamente a pressão do treino técnico.
Barker, Clive: Theatre Games - A New Approach to Drama Training, methuem drama, 1977 (226 pág.)
Aulas no Contagiarte - Material
Nestas aulas o material necessário é pouco e explica-se bem:
- calçado confortável
- roupa leve
- fôlego
isto porque se mexe e se cansa por vezes em apanhadas e lutas de brincar e fugas e outros jogos e usos do corpo. Porque é preciso pôr o corpo em movimento para que a cabeça pense e imagine melhor, pois afinal pensamos e imaginamos com o corpo, com as sensações e com os sentidos, daí que se repesque o exploratório dos jogos que em criança jogávamos, quando estávamos - aí sim - a explorar, mais que o mundo, a nossa própria capacidade de o ver e sentir e figurar.
Wednesday, October 10, 2007
O espectador e o processo de preparação
Todos precisamos de um espectador, precisamos dele para desafio, para empurrão, para alavanca, para magnificar as nossas acções. A voz (seja ela falada ou escrita) sai mais sonora, mais grandiloquente, mais importante, e as acções são mais derradeiras, mais importantes, mais fatais, mais sedutoras.
Precisamos de espectadores porque esse é como que o nosso próprio olhar, o nosso próprio mirar sobre nós mesmos: agimos perante outros com o mais forte ou o mais desgarrado de nós mesmos (que às vezes pode não ser o melhor de nós, é certo). Precisamos de um espectador para que ganhe importância, eco, razão de ser o que fazemos; é sempre para alguém que criamos, que falamos, que publicamos, que tornamos público qualquer coisa; é sempre para alguém e é preciso haver esse alguém. Mas isto não sempre, nem desde sempre; o espectador não pode existir sempre. É preciso haver o recuo do cão da espingarda para que esta dispare.
Na nossa relação com o espectador nem tudo poderá ser sempre privado e nem tudo poderá ser sempre público. Antes do espectador virá a fome de espectador: há um processo antes, há um tempo de recuo, de preparação, de ânsia se preferirem; será preciso ir até ao formigueiro ou até que se sinta vontade de sair da sala e de fazer sair da gaveta (real ou simbólica) textos e folhas albinas de não verem sol. Mas para que aconteça esse disparo da espingarda e essa gana de falar (e fazê-lo em público) é indispensável o tal recuo, ou retiro, ou tempo isolado de espera activa, de treino, de fortalecimento, de estimulação. E assim como quando as pernas saem a correr depois de só o fazermos insistentemente num mesmo ponto, como tivessem vontade própria ou fome, assim será com a nossa vontade criativa, que precisa enfim - depois de saltar medos e incertezas - de ir, quase furiosamente, ao encontro de alguém.
Tuesday, October 9, 2007
Jogo simbólico e shadow boxing
Há jogo simbólico no shadow boxing, assim como o há em outras etapas de treino nos desportos de combate e artes marciais, treino que subentende situações para as quais se prepara reacções possíveis.
É um exercício que se baseia em pôr hipóteses e, assim como com todas as hipóteses, é do domínio do imaginário, do simulacro. O shadow boxing é o exercício desportivo por excelência de jogo simbólico porque é uma luta no vazio. Tudo está na imaginação do lutador (que por sua vez é despoletada pelos seus próprios golpes…). Cabe-lhe a ele jogar a isto: “…faço isto e defendo-me e ataco por aqui e ele pode ir por aqui e eu então vou por aqui e faço isto…” cabe-lhe a ele ir escolhendo, combinando e recombinando que golpes, que sequências, que desvios, que recuos, enfim, que acontecimentos, que reacções e que estratégias.
É por isso uma espécie de acção dramática, uma espécie de acção (ainda que lhe não ocorra provavelmente isto) de faz-de-conta, pois é uma acção que faz do escuro, da sombra, do ar que se golpeia, um adversário, uma espécie de amigo invisível que combate connosco, que nos puxa, que nos desafia. E mais uma vez, como com todos os amigos invisíveis, estamos na verdade a lidar connosco, com o nosso entusiasmo, com um nosso duplo, com um outro que tem a nossa exacta vontade de vencer, um duplo que podemos querer que seja da parte negra, da parte traiçoeira, da parte que prevemos pior em nós e, por arrasto, nos outros (o mundo é visto à nossa imagem, dos nossos valores e temores).
É um jogo de faz-de-conta mediado pelo cronómetro para vários rounds semelhantes à realidade e, exactamente por causa desse cronómetro, quer-se verosímil, semelhante à realidade, à mesma realidade do adversário real com que se jogará. É uma brincadeira grave, é-o, mas é uma brincadeira que exige fazer-se de conta, e fazê-lo muito bem, pois depende do quão bem se imita a realidade.
E, assim como neste exercício, existe até um jogo simbólico em toda a restante actividade de treino (desportivo ou não) porque não estando lá os elementos reais que mais tarde se defrontará, existe antes em seu lugar a suposição, a simulação das dificuldades, o simulacro. O que é um bom assunto a desenvolver.
Monday, October 8, 2007
A recriação do mundo ou a necessidade do jogo
Jogo é combinação de partes, é inversão de lugares e papeis, é projecção, é elaboração e concretização de cenários possíveis, é o desenvolvimento de probabilidades, é o reino do “E se…?”, é o mundo por excelência das estratégias, dos pequenos sonhos e grandes batalhas por pontos (o que pode haver de mais invisível e impalpável que pontos…?).
Jogo é pôr peças em lugares diferentes, é não apenas ver o mundo por outro óculo (com o tal E se…?) mas também agir nele de outro modo. Jogo é dotarmos nós o mundo de regras nossas, é inventarmos ou pormos em prática regras que nada têm a ver com as herdadas e usadas, com as do mundo lá fora; jogo é brincar, é brincar a moldarmos o nosso estar no mundo, a usarmos as coisas de modo diferente, a fazermos coisas de modo diferente; jogo é atribuirmos necessidades e regras a momentos e acções que têm outras necessidades e regras, é recombinação, é o domínio do arbitrário tomado por nós como lei, ou do que nós, em jogo, arbitrariamente definimos como lei e poderia ser outra coisa e só tem graça porque de facto não é lei e alterna com a verdadeira lei.
É urgentemente necessário inventar uma Constituição própria, um Código Civil absolutamente individual, absolutamente absurdo e ao gosto de cada, é necessário cada um de nós criar um Código de Direito Civil e Penal para que tenha e sinta e exerça sobre si e as suas acções uma jurisdição de juízes. Bem à maneira das festas dos loucos da Idade Média (em que o mundo era posto, por momentos, ao contrário) é necessário tornarmo-nos juízes ao contrário, para que isso nos ajude a viver neste mundo, para que consigamos viver e ver de outro modo o tal mundo lá de fora em que as leis e regras são obrigação.
Saturday, October 6, 2007
Justificação do Jogo Dramático
O jogo dramático, enquanto aprendizagem e prática de técnicas teatrais, opõe-se ao exercício, vejamos porquê.
A brincadeira, seja ela mais ou menos séria, não é um mecanismo exacto, é antes como que um animal, uma coisa viva.
E o jogo, como brincadeira, é isso mesmo: uma coisa com vida própria, que nasce, que tem de ser alimentada, que pode viver muito e que acaba inevitavelmente por morrer. Tudo isto podemos vê-lo em qualquer brincadeira ou jogo. Um jogo apetece e logo ganha vida. Um jogo torna-se aborrecido, então esmorece e morre e, se continua a praticar-se, passa a ser o seu outro extremo: trabalho.
A antinomia entre jogo e exercício é a mesma entre jogo e trabalho. Há algo em nós enquanto homens e mulheres que nos faz alternar o trabalho com o jogo, seja brincadeira espontânea ou um desporto regular. E por mais que digamos que o actor (o mais especializado e profissionalizado dos fazedores-de-conta) trabalha - ele, paradoxalmente, só poderá fazê-lo se esquecer (e for ajudado a esquecer) que trabalha. Pois sem jogo não há aquelas sinapses cerebrais caóticas que levam a novas combinações, a novas respostas, a novas fantasias, a um brilho nos olhos, à criatividade e à excitação (em maior ou menor grau) que leva a ela. Sem jogo haverá somente o trabalho. O faz-de-conta deixa de ser uma brincadeira adulta e passará a ser um simulacro de simulacro, um fingir que se finge. Um fingir que se brinca. Um fingir que se acredita. E há uma grande diferença de carácter e de riqueza entre faz-de-conta e fingimento. É que uma coisa é brincar e outra é mentir.
